Karen Lisboa

Natureza e população do Brasil na visão de viajantes alemães

Natureza e população do Brasil na visão de viajantes alemães
Caçador de Wied-Neuwied, 1816. In: Brasilien-Bibliothek der Robert Bosch GmbH. Vol. 2, 1988

No entender do historiador Sérgio Buarque de Holanda, o grande número de estrangeiros que veio ao Brasil após a abertura dos portos, em 1808, significou um novo descobrimento de nossas paragens. Com a presença da família real no Rio de Janeiro e o fim do exclusivismo colonial português, as fronteiras do país foram abertas para as outras nações.

Iniciava-se o século em que o Brasil, ao lado do México, seria um dos países latino-americanos mais visitados por estrangeiros. A imensidão geográfica, as riquezas naturais e a diversidade étnica atraíram estudiosos profissionais e diletantes. Razões econômicas, científicas e políticas justificaram ousadas viagens de exploração, que devem ser entendidas no contexto do neo-colonialismo, das disputas de poder entre França, Inglaterra, Rússia, Império Austro-Húngaro e Alemanha. Por outro lado, o próprio Brasil encontrava-se numa fase de construção do Estado e de sua Nação. Para tanto era necessário devassar o próprio território, firmar suas fronteiras, estudar o potencial econômico, conhecer a tão diversificada população.

Pode-se considerar que a vinda de D. Leopoldina para o Rio de Janeiro, em 1817, acompanhada de um seleto grupo de pesquisadores, motivou a organização de ulteriores expedições científicas no Brasil. Antes disso, alguns alemães já tinham se aventurado em nossas paragens, tal como o mineralogista Wilhelm Ludwig von Eschwege, que veio ao Brasil contratado pela coroa portuguesa com o objetivo de instalar siderúrgicas e explorar minas de carvão. Aproveitou a estada de dez anos para concretizar investigações cartográficas e geográficas, editadas em extensa obra. Outro foi Georg Heinrich von Langsdorff, formado em medicina e ciências naturais pela Universidade de Göttingen, que conheceu as costas brasileiras em uma viagem de circum-navegação, sob o comando do capitão Krusenstern, no final de 1803. Fascinado com a natureza tropical, retornou em 1813 ao Brasil, na qualidade de cônsul-geral da Rússia.

Outro fator que corroborou o interesse de alemães pelas regiões tropicais brasileiras foi o impacto da expedição do naturalista Alexander von Humboldt, após o seu retorno em 1805 ao continente europeu. Em termos práticos, Humboldt apoiou e indicou a vinda de naturalistas ao Brasil, como foi o caso de Maximilian zu Wied-Neuwied, entre outros. E em termos teóricos, os preceitos humboldtianos de unir o tratamento científico a uma abordagem estética afinada ao gosto romântico que se espraiava na Europa transformaram os trópicos americanos em um destino extremamente almejado pelos cientistas. As descrições humboldtianas da fisionomia da natureza serviam de paradigma para inúmeras narrativas de viagem. Além disso, o ambicioso projeto do naturalista Carl von Linné de classificar, descrever e sistematizar os objetos de todos os reinos da natureza, ensejou a fúria colecionista por novas espécies, tornando lugares pouco conhecidos e ricos em diversidade natural muito cobiçados.

O Brasil, dotado de diferentes biomas, com a abertura dos portos, abriu para o mundo a sua diversidade de espécies. O escopo do cientista natural do início do século XIX ultrapassava porém os estudos da natureza. Seu olhar investigador voltava-se igualmente para tudo o que dizia respeito à sociedade humana. Desde os aspectos antropológicos até a história, a cultura intelectual e material, a economia, os costumes, etc. E também nesse sentido, o Brasil com índios, negros, brancos e mestiços, prestou-se como excelente campo de observação e de interpretação dos processos históricos e civilizatórios.

Dentre a variedade dos tipos de viajantes alemães, que produziram, apoiados na viagem – relatos, ensaios, epístolas, tratados, romances, poemas, pinturas, gravuras, desenhos – pode-se afirmar que, ao lado dos naturalistas, há mercenários (como, por exemplo, Carl Seidler, Karl von Koseritz entre outros), numerosos artistas e fotógrafos, comerciantes e políticos coloniais. Mais timidamente, vieram educadoras, como por exemplo Ina von Binzer, que aporta no início da década de 1880 no Brasil. Como professora particular de famílias abastadas, ela trabalhou numa das regiões mais ricas do país na época, o interior de São Paulo. Nesse ambiente, teve a oportunidade de observar os últimos anos da escravidão, marcados por muitas tensões e crises na lavoura do café. Igualmente, vivendo junto às famílias onde trabalhou, apresenta um quadro bastante lúcido sobre a nossa elite do final do século XIX. Registrou suas observações em cartas que enviou a uma suposta amiga, na Alemanha, oferecendo uma série de reflexões sobre o choque cultural e as diferenças entre esses mundos, matizado pelo olhar de uma mulher educada na velha Prússia.

Dentre esses numerosos viajantes, que escreveram sobre o Brasil, vários se destacaram pelo forte e longo envolvimento que tiveram com país. Segue um breve comentário acerca de alguns desses estudiosos.

Comparada ao itinerário de Spix e Martius e à expedição de Langsdorff, a viagem do príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied (1782-1867) não foi longa. Percorreu Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia entre 1815 e 1817. O que porém lhe empresta lugar de destaque foi o fato de permanecer por meses vivendo com os indígenas, em particular, os botocudos, em Minas Gerais, região estratégica pela exploração de riquezas minerais bem como pela expansão da fronteira agrícola. Esses índios eram considerados como extremamente perigosos e “selvagens”. Nesse sentido, Wied foi um precursor da moderna antropologia ao deter-se demoradamente entre eles. Auxiliado pelo índio Quack, que lhe serviu de tradutor, interlocutor, mediador e guia, Wied conseguiu aos poucos amenizar a sua visão preconceituosa. Tal qual Langsdorff, Wied estudou em Göttingen e foi aluno de Blumenbach, um dos “antropólogos” mais relevantes do período e que enviava seus discípulos pelo mundo com o fito de realizar pesquisas sobre as diferentes raças humanas. Sob a influência do estilo estético-científico de Humboldt, Wied editou seu relato de viagem, que ao lado da etnografia, traz estudos naturalistas bem como ricas descrições dos lugares por onde passou. Foi publicado em 1820 com numerosas ilustrações, que resultaram dos próprios desenhos de Wied, e prontamente foi traduzido para outras línguas.

O livro de Wied foi editado no ano em que Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e Johann Baptist von Spix (1781-1826) voltaram de sua longa jornada pelo Brasil. Chegaram em Munique após três anos de viagem em que percorreram mais de 10.000 km pelo país. Aportaram em 1817 no Rio de Janeiro, a mando da Real Academia de Ciências de Munique, sob os auspícios de Maximiliano I da Baviera e do imperador da Áustria, Francisco I. Ambos os naturalistas integravam o séquito de estudiosos que acompanhavam D. Leopoldina. Como a comitiva austríaca acabou se atrasando em sua viagem, Spix e Martius seguiram independentemente o seu trajeto. Inicialmente, o pintor austríaco Thomas Ender os acompanhou, porém motivos de saúde o obrigaram a abandonar a expedição e retornar para Viena. Ainda assim, em sua breve estadia de um ano, o artista confeccionou mais de 1.000 esboços.

Considerando que o litoral do país já era mais conhecido, Spix e Martius traçaram um roteiro bastante ambicioso. Partiram do Rio rumo a São Paulo e depois a Minas Gerais. Em seguida, atravessaram por meses uma região até então não estudada pelos naturalistas: o sertão da atual Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão. Chegaram em São Luís, em 1819, bastante doentes e enfraquecidos. Lá se recuperaram. De Belém, lançaram-se à longa excursão pela bacia do rio Amazonas.

Dentre os naturalistas alemães que estiverem no Brasil imperial, nenhum deles conseguiu transformar a experiência da viagem em obra tão extensa como Martius. Spix morreu seis anos após o retorno deixando seu trabalho inconcluso. Já o botânico Martius viveu mais quatro décadas nas quais se dedicou aos assuntos brasileiros. Do relato de viagem, aos estudos da flora e da fitogeografia, passando pela etnografia e chegando a fazer incursões pela literatura ficcional e historiografia, tudo versa sobre o Brasil.

Entre 1823 e 1831, publicou-se o magistral relato de viagem pelo Brasil (Reise in Brasilien) em três volumes, cuja edição de quase 1.400 páginas vem acompanhada de mapas, numerosas estampas (de cenas da natureza, tipos humanos e costumes) e um compêndio musical com melodias indígenas, lundus e modinhas. Não seria exagero afirmar que a Viagem pelo Brasil alcançou um apurado estilo estético-científico à la Humboldt e adequado ao Romantismo. A natureza tropical era fonte de pesquisa e de sentimentos. Já em sua chegada ao Brasil, no Rio de Janeiro, o encantamento se evidencia em sua descrição quando se afastaram da cidade para adentrar a floresta do Corcovado: sentiam-se enfeitiçados no meio da pujante natureza estranha. (...) O aspecto majestoso, a doce tranquilidade e a paz dessas matas, só interrompidas pelo sussurro das asas dos colibris matizados, que voam de flor em flor e pelo canto mavioso de passarinhos estranhos e insetos (...). E extasiados concluíram: “tudo age com magia toda especial na alma do homem sentimental renascido pelo espetáculo do delicioso país.”

São inúmeros os exemplos em que a natureza dos trópicos é interpretada como instância que provoca prazer, deleite, encantamento, permitindo uma sensação de integração do observador com a natureza. E mesmo que em alguns momentos ela seja ameaçadora, devido aos animais ferozes e peçonhentos, às infernais perseguições de insetos, como pulgas, mosquitos e baratas, ao clima extremamente úmido ou seco e quente, e às matas sufocantes, nas descrições de Spix e Martius prevalecem as imagens prazerosas da natureza. E, dependendo do seu estado de “selvageria”, ela torna-se um verdadeiro paraíso para a descoberta de novas espécies, contribuindo generosamente para a tarefa de aumentar as coleções dos naturalistas.

Se em suas comparações com a Europa, a natureza tropical é enaltecida e considerada superior, em relação aos habitantes transpiram visões depreciativas, advindas de preconceitos raciais e hierarquizantes. Mediados pelo olhar eurocêntrico, como praticamente todos viajantes, acreditavam que demasiadas diferenças “raciais” e culturais eram um empecilho para o processo civilizador, que deveria ser conduzido pelos brancos, considerados “superiores” aos índios, mestiços e negros. Diante da constatação de que boa parte da população não era branca e nem europeia, defenderam a ideia da miscigenação como caminho para “branqueá-la” e “civilizá-la”. Vislumbrando o sucesso do processo civilizador, viam com bons olhos a presença da monarquia no Brasil, que garantiria mais estabilidade num país escravocrata. Martius, na década de 1840, desenvolveu essa ideia no tratado “Como se deve escrever a História do Brasil” destinado ao recém-fundado Instituto Histórico Geográfico Brasileiro.

Diante dos índios nutriram especial estranheza, desconfiando de sua humanidade, ora relegando-os ao reino animal ora destinando-lhes um lugar entre os “bárbaros” e “semi-civilizados.” Em sua coleção de “peças vivas” também incluíram quatro índios para apresentá-los como objeto de estudo à comunidade científica na Europa. Diferentemente do paradeiro de Quack, que acompanhou Wied-Neuwied para a Alemanha e lá se ambientou, dois morreram na travessia atlântica, os outros dois, ainda crianças, faleceram pouco após a chegada do inverno em Munique.

Quando Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852) aportou pela segunda vez no Brasil, em 1813, contava 39 anos de vida e já havia percorrido boa parte do planeta. Suas relações científicas com a Real Academia de Ciências Russa possibilitaram a sua nomeação ao cargo diplomático no Brasil. Langsdorff, que já trabalhara como médico em Portugal e dominava o português, deveria representar no Brasil os interesses do governo russo de ampliar sua frente de comércio bem como realizar pesquisas e estudos naturalistas. Com seu apoio organizou algumas missões menores no Brasil, com Friedrich Sellow, Georg Freyreiss e Wied-Neuwied. Nesse período, a Fazenda Mandioca – de sua propriedade – tornou-se uma espécie de centro científico e local de encontro de estudiosos. Lá realizavam-se plantações experimentais, cultivava-se café, mandioca, milho, batata, banana, noz- moscada e explorava-se a natureza da mata tropical dos arredores. E também foi nessa fazenda, que os naturalistas Spix e Martius teriam visto pela primeira vez um índio botocudo “antropófago”, que não somente ocupava a função de lacaio mas também de “peça viva” de gabinete naturalista.

Em 1820, Langsdorff retornou para a Europa com o objetivo de trazer imigrantes para a sua fazenda bem como organizar uma grande expedição. Com apoio financeiro do czar, contratou o astrônomo Nester Gavrilovitch Rubtsov, o botânico alemão Ludwig Riedel, o zoólogo Édouard Ménétries e o artista Johann Moritz Rugendas. De volta ao Brasil, Langsdorff delineou um itinerário extremamente ousado, mas demorou para iniciá-lo. Semelhante a Spix e Martius, que atravessaram o sertão do atual nordeste do país, região, como já dissemos, ainda ignota para a ciência europeia e brasileira, Langsdorff quis alcançar a Bacia Amazônica pelos rios da região central do Brasil. Assim, sua expedição refez em parte o caminho dos antigos bandeirantes e das rotas monçoeiras, detendo-se porém nos lugares e descobrindo rincões pouco vistos pelo europeus. Por exemplo, a etapa em Minas Gerais, província visitada por grande parte dos estrangeiros em virtude de suas riquezas minerais, demorou oito meses. Traçaram nesse período 1.500 km. Em Mato Grosso, a comitiva permaneceu um ano. Langsdorff testemunhou a sua ansiedade em conhecer as terras brasileiras em uma carta de 16 de março de 1825: “Quanto mais eu conheço esse país, mais aumenta o interesse para com os seus lugares desconhecidos. O Brasil é realmente um novo mundo.”

Em Cuiabá a comitiva se separou. Riedel e Aimé Taunay, pintor contratado depois que Rugendas havia rompido com Langsdorff e abandonado a missão, seguiram a oeste pelos rios Mamoré, Madeira e Amazonas até o rio Negro. Langsdorff e os demais tomaram os rios Preto, Arinos, Jurena, Tapajós e Amazonas.

Longe do litoral, os cientistas devassaram uma terra ainda ocupada por numerosas tribos indígenas. Estudioso da antropologia que, como Wied, manteve estreito contato com Blumenbach, Langsdorff esperava que os artistas da expedição retratassem os indígenas de forma mais próxima da realidade. Nessa tarefa foram fixadas numerosas imagens dos povos mundurucu, apiacá, txamacoco, guaná, guató, bororo. Só pela mão de Hercules Florence, o segundo ilustrador, também integrado para substituir Rugendas, computa-se que foram mais de 300 desenhos da natureza e dos habitantes. Os diários de viagem de Florence e de Langsdorff, além de descrever o cotidiano da viagem e do trabalho científico, revelam, conforme mostra Maria de Fátima Costa (1995), que aquele Brasil profundo estava em plena guerra. A guerra contra um clima úmido, contra doenças, contra enxames enormes de insetos e pior que tudo isso, a guerra entre o colonizador e os habitantes autóctones.

Esses expedicionários atravessaram fronteiras entre rios e terras, entre doença e saúde, entre vida e morte, entre sanidade e inconsciência. O jovem Aimé Taunay morreu afogado no rio Guaporé. Langsdorff adoeceu a ponto de perder os sentidos. Seu diário de viagem é abortado em maio de 1828. Recentemente foi traduzido e editado em português. A íntegra dessa odisseia de oito anos em que se percorreu mais de 15.000 km foi descrita por Florence que se tornou um fiel auxiliar de Langsdorff. O farto material dessa expedição traçada por diferentes estudiosos resultou num enorme corpus documental sobre a natureza e a população e que em grande parte foi sucessivamente enviado para a Rússia. Langsdorff retornou em 1830 para a Alemanha. Sem recuperar a sua saúde, esse cientista, outrora tão vital, não conseguiu concluir a etapa final de seu projeto: avaliar as peças zoobotânicas, mineralógicas e etnográficas bem como as anotações e ilustrações feitas no calor da hora. E nenhum dos outros membros assumiu a tarefa de editar obras tal qual Martius, Rugendas, Wied-Neuwied e outros o fizeram.

Moritz Rugendas (1802-1858) foi criado numa tradicional família de artistas de Augsburg. Chegou ao Brasil, como já mencionado, em 1822 a convite de Langsdorff. Conforme Pablo Diener (1997) assinala, Langsdorff o contratou pela sua vocação como desenhista. Nota- se que dessa primeira viagem ao Brasil, grande parte de seus trabalhos são ilustrações a lápis de plantas e animais, bem como retratos dos tipos humanos, concebidos sob a orientação do olhar naturalista. Alguns desenhos foram em seguida timidamente aquarelados. Depois que Rugendas rompeu com Langsdorff, com o qual somente viajou do Rio de Janeiro para Minas Gerais, resolveu escrutinar sozinho o país, quando conheceu a Bahia e Pernambuco. Em 1825 voltou para Europa, com posse de pelo menos 500 desenhos, a contragosto de seu ex- empregador. O artista retrabalhou suas obras para a publicação do belo Voyage Pittoresque dans le Brésil (Paris 1827-1835), lançada em fascículos contendo 100 ilustrações. Humboldt não somente apoiou a edição como opinou na seleção das imagens. Para este naturalista, Rugendas foi o artista que melhor teria captado e reproduzido as características da natureza tropical em suas imagens.

Semelhante aos naturalistas, Rugendas quer apresentar um quadro geral do que viu no Brasil. As ilustrações vêm precedidas de textos introdutórios escritos por uma espécie de ghost writer, Victor Aimé Huber. O livro divide-se por assuntos e não conforme o deslocamento pelo espaço, como os relatos de Wied-Neuwied e de Spix e Martius. De início, ao leitor é apresentada uma explanação das diferentes paisagens brasileiras, considerando aspectos geográficos, climáticos, da vegetação e do relevo. Em seguida, são descritas as regiões em particular, incluídas também cidades e a população que as integram (Rio de Janeiro e redondezas, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco). A caracterização dos tipos humanos vem em seguida, considerando a composição racial brasileira, seus aspectos antropológicos, sociais e culturais. Em sua narrativa, o jovem pintor demonstra que da mesma forma que sentiu fascínio pela diversidade natural, considerou a diversidade étnica como extremamente interessante para o “observador”, o “estadista” e o “cidadão”. Apesar de tratar longamente da temática indígena, o contato de Rugendas com os índios foi bastante exíguo e não seria um equívoco afirmar que muitas das cenas indígenas no Voyage não resultam de informações que ele tenha colhido diretamente. Diferente é o caso dos retratos que faz dos índios coroados, puris e maxacalis. A carência de certo embasamento documental não exclui porém a relevância de comentários gerais sobre a questão indígena que merecem maior atenção do leitor. Mais cauteloso que Spix e Martius em suas observações sobre os índios, Rugendas critica a opinião de viajantes coetâneos que desconfiam da capacidade do índio de absorver a civilização ou de que eles se encontrariam no “estado natural” ou no “primeiro degrau da civilização”. É peremptório ao afirmar que essas ideias são “erradas”.

Um dos focos de atenção de Rugendas são os negros que vivem no Brasil. Embora em suas apreciações não supere de todo conteúdos racialmente preconceituosos, vale ressaltar a sua crítica em relação ao tráfico negreiro e à própria escravidão, advogando a sua abolição gradual. Rugendas enfatizou a necessidade de acabar de fato com o tráfico negreiro, que desde a década de 1820 foi declarado ilegal, porém a lei não pegou. Como é de notório saber, propostas abolicionistas de um modo geral na primeira metade do século XIX brasileiro foram apresentadas em número diminuto e com nenhum sucesso. Foi o caso do projeto de lei de José Bonifácio de Andrada encaminhado ao parlamento em 1823. Como Rugendas estava nesse período no Brasil, deveria estar inteirado da questão. O jovem pintor, com sua famosa imagem do “Navio Negreiro”, que muito provavelmente não resultou de uma observação direta, deixou importante legado para a iconografia abolicionista.

Rugendas voltou para o Brasil numa segunda ocasião, quando retornava de sua jornada pela América Latina. De 1845 a 1846 residiu um ano no Rio de Janeiro. Acolhido na cidade, gozou dos laços que selou na década de 1820. Rugendas foi convidado a expor suas obras e realizou uma série de retratos da família real.

É de notório conhecimento que as missões desses viajantes e o que produziram para a comunidade científica e o público geral são fonte inesgotável para o conhecimento do nosso passado oitocentista. O Brasil do século XIX, em seu projeto de construção nacional, se apropriou desses estudos, incorporando-os nas ciências naturais, na historiografia, na literatura, nas artes, no pensamento social e na política. A maioria desses alemães levantou críticas ao que viram no Brasil, mas ao mesmo tempo apostavam no desenvolvimento da jovem nação e apresentaram uma série de exortações. O Brasil era visto como terra auspiciosa, jovem, onde a natureza havia feito ainda mais do que os homens. O trabalho desses viajantes colaborou para o estreitamento das relações entre esses dois mundos, dinamizando trocas científicas e culturais. Por outro lado, essas trocas nem sempre ocorreram equilibradamente. Desde a forma como o saber circulou entre as instituições e as pessoas até o ocultamento das vozes e dos braços que possibilitaram a realização desses incríveis itinerários. Afora Quack, figura que se torna um protagonista importante no relato de viagem, quantos guias, tradutores, mediadores e informantes foram necessários para construir todo esse saber? Nessas minuciosas descrições revelam-se preconceitos escorados numa visão eurocêntrica baseada em um sistema binário e hierarquizado de civilização e barbárie, de cultura e natureza, de progresso e atraso. Nesse sentido, essas fascinantes biografias, viagens e obras versam tanto sobre o Brasil como sobre a Alemanha oitocentista e como tal precisam ser compreendidas criticamente em seu contexto histórico e transcultural.