Utopia ou miopia, prospecto turístico, prognóstico econômico ou delírio messiânico? Zweig acertou na profecia ou foram os brasileiros que recusaram o seu modelo? “Brasil, um país do futuro” é um debate aberto há mais de sete décadas – desde agosto de 1941 – quando o livro foi lançado no Brasil e, em seguida, em seis outros idiomas. Está longe de concluído, sequer foi iniciado. Desde o Descobrimento, nenhum dos escritos sobre o Brasil teve tamanha repercussão e mexeu com tantos pruridos. O título adotado por Zweig (na realidade, sugerido pelo tradutor para o inglês, James Stern), não é apenas um achado literário, converteu-se no sobrenome do país. Nos quatro cantos do globo é impossível dissociar o Brasil do aposto (ou epônimo?) “país do futuro”.
Maldição ou desafio, o qualificativo colou para sempre. Mesmo ao referir-se ao “país do presente”, como o fez o presidente Barack Obama quando visitou o Brasil (em 2011), por trás da metáfora positiva estava outra, difusa e perturbadora, a do país-porvir. Ninguém proclama os acertos de Zweig, ninguém rejeita suas conclusões. O título, bem como suas tônicas, se converteu num prêmio inconfortável com um lastro irremovível de reticências, inconveniências e perplexidades. Governo algum o celebrou ou festejou o autor. Salvo o de Getúlio Vargas, que se apropriou do entusiasmo e da ternura de Zweig pelos brasileiros, converteu-os em preito ao Estado Novo e retribuiu seis meses depois oferecendo ao suicida as exéquias oficiais. O desfecho trágico do utopista de certa forma comprometeu sua utopia.
Em plena era do Übermensch, o Super-Homem nazista, Zweig escapou do simplismo caipira do Jeca Tatu de Monteiro Lobato e do exótico Macunaíma de Mario de Andrade e, como alternativa, ofereceu o brasileiro cordato, satisfeito, às vezes tristonho, inventivo e, sobretudo, alheio aos estereótipos que os viajantes desde o início do século XX, extasiados ante a exuberância do país, fantasiaram sobre os seus habitantes.
O que Zweig batizou logo nas primeiras páginas como “Experimento Brasil” foi, na realidade, uma fascinação pela miscigenação racial. Em meio ao ódio racial que dominava a Europa e tanto o apavorava, o Brasil oferecia com bonomia e sem alarde, um projeto multicolorido de convivência entre os diferentes com a indispensável carga de tolerância.
“Onde quer que as forças éticas estejam trabalhando, é nosso dever fortalecê-las. Ao vislumbrar esperanças de um novo futuro em novas regiões de um mundo transtornado, é nosso dever apontar para este país e para tais possibilidades...” Este passou a ser o novo projeto do vienense, “caçador de almas” (segundo Romain Rolland) e colecionador de ideais. O livro acabou por ajudá-lo a obter o valioso visto de residência num momento em que os refugiados do nazifascismo eram devolvidos aos países de origem e à Gestapo. E, em simultâneo, ofereceulhe a oportunidade para alistar-se de forma ostensiva e inequívoca na legião anti-hitlerista sem envolver-se na radicalização partidária que tanto detestava.
Prometera tornar-se o camelô do Brasil na Europa. Acontece que os atributos que propalou não foram do agrado das elites que só apreciam a morenice no verão. O Brasil mulato que Zweig pretendeu vender ao mundo era um estandarte anti-hitlerista e anti-racista. Este também embaraçoso até agosto de 1942 quando o Brasil entrou na guerra e Zweig já estava morto.
Quando desembarcou no Brasil pela primeira vez, em 1936, já era bem conhecido o núcleo das ideias de Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala lançado três anos antes. Embora doutorado em história, Zweig não era um teorizador. Na área da não-ficção (inclusive nas biografias), sentia-se mais à vontade como Vermittler, mediador, e nesta condição associava a acuidade do observador com as percepções do intelectual refinado servidas pela prosa algo épica herdada do Dichter, poeta. Não menciona Freyre, mas a miscigenação tão valorizada pelo sociólogo pernambucano está embutida no cerne e em várias passagens do seu livro brasileiro. Também o multiculturalismo, embora o termo ainda não existisse. Era a sua maneira de reafirmar as antigas convicções internacionalistas, anti-xenófobas e pacifistas num país àquela altura intoxicado pelas idéias integralistas. A aversão ao estilo panfletário e polêmico não impediu que refutasse ostensivamente o pai do racismo moderno, Joseph Arthur Gobineau, cujas profecias sobre a inevitável degeneração dos povos mestiços miravam expressamente o Brasil (onde serviu como embaixador junto à corte de D. Pedro II). Zweig enquadra o inspirador da extrema-direita francesa como “fanático teórico racista” e o confronta ao afirmar que a mistura étnica no Brasil, ao contrário do que preconizou Gobineau, constitui “o cimento de uma civilização nacional conscientemente utilizado”.
O futuro próspero e rico prometido no título e ainda hoje considerado equívoco, não era o foco principal das suas preocupações. “Por honradez, não posso oferecer conclusões definitivas, previsões e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil.” Até confessa um fastio com estatísticas, com o cálculo do Produto Interno Bruto e a renda per-capita. Dispensa-se de saber quantos carros, banheiros, aparelhos de rádio e taxas de seguro existem por cabeça. Não acredita que os povos considerados mais civilizados sejam aqueles que mais produzem e consomem. E expõe candidamente a premissa da sua quimera política: “Um grau mais elevado de civilização não impediu que certos povos a usem em nome da bestialidade.”
Uma das mais intensas vivências experimentadas por Zweig em São Paulo na primeira viagem, foi a visita a uma prisão-modelo completamente auto-suficiente, inspirada nas doutrinas do psiquiatra alemão Ernst Kretschmer para a recuperação dos criminosos pelo trabalho. Comentou-a nos diários, em carta à sua interlocutora preferida (a ex-mulher, Friderike Zweig) e extensamente no livro brasileiro. Viu naquela experiência carcerária mais uma prova da criatividade brasileira em aproveitar o que há de melhor no mundo.1
O “Experimento Brasil” é, na realidade, uma resposta à questão crucial daqueles tempos turbulentos: como conseguir uma convivência pacífica entre as pessoas apesar das diversidades de raças, classes, cores, religiões e convicções? Aqui encontrou a resposta e com ela escreveu o livro. Profissão de fé humanista, profetismo com entonação bíblica e telúrica na linha oposta ao futurismo tecnológico já em moda. Não obstante, dedica um capítulo à história econômica do país, identificando com surpreendente competência algumas constantes e nomeando projetos que rapidamente reverteriam as desigualdades e o atraso. Foi ajudado pelo amigo Roberto Simonsen – único colaborador citado no texto – que lhe ofereceu seus vastos conhecimentos e experiência como engenheiro, empresário, economista, historiador e acadêmico. Mencionado de passagem, um dos projetos sugere a substituição do petróleo (àquela época tão escasso no país) pelo álcool da cana-de-açúcar, o que de fato começou a ser encarado com seriedade 34 anos depois.
Concluiu a redação do livro na biblioteca da Universidade de Yale, em New Haven, Connecticut e estava tão certo do sucesso no Brasil que decidiu retornar ao país em vez de solicitar um visto para permanecer nos EUA. Ao desembarcar, o livro já estava nas livrarias e ele convertido em alvo de uma campanha viciosa e mesquinha por parte da imprensa. Costa Rego, o todo-poderoso redator-chefe do Correio da Manhã, o mais importante matutino da Capital Federal, dedicou-lhe cinco artigos sucessivos na página de opinião, aos quais não faltou o veneno dos preconceitos contra os estrangeiros nem insinuações maliciosas sobre uma suposta remuneração saída dos cofres do D.I.P. Foi o sinal para que o resto da imprensa se sentisse autorizada a desancar o escritor mais traduzido do mundo e cujo erro foi amar um país que não era o seu.
A perversidade o surpreendeu. Recolheu-se a Petrópolis para distanciar-se das fofocas e terminar a autobiografia, marco escolhido para concluir a sua vida. A guerra da qual fugia há seis anos, ao chegar ao Novo Mundo apressou o cronograma do idealista vencido pela impaciência. Seu último texto com um solene título em português, “Declaração”, tem 21 linhas das quais dez são dedicadas ao “Experimento Brasil” – talvez agora em condições de ser serenamente avaliado. Ou arquivado junto com o cesto de desafios indevidos e promessas inoportunas.
A prisão-modelo foi desativada anos depois e situava-se no complexo penitenciário do Carandiru, palco de uma chacina de 111 presos em 1992.